domingo, 27 de março de 2011

O resgate do soldado Jorge

No longínquo ano de 1998 (ou seria 97?), fim da última década do milênio passado, recordo-me de ter lido uma matéria de capa no Segundo Caderno do Globo, sobre uma, então estreante, banda que faria seu primeiro show no (que Deus o tenha) finado Ballroom (casa de shows no Humaitá que só saberíamos a falta que faria depois de ela ter virado um prédio de apartamentos residenciais) num dia de semana, talvez quarta, ou terça, e que vinha sendo apontado como o fino da bossa. 
O grupo atendia pela alcunha de Farofa Carioca e era composto por um punhado de bons músicos da cena da Santa Teresa e (imaginem, na época totalmente marginal, esvaziada, perigosa e esquecida) Lapa.  Um grupo plural, multi racial, com integrantes de lugares e até países bem distintos. E essa pluralidade se refletia (positivamente) no som. Na época, as matérias sobre música em jornais e revistas, pelo menos pra mim, tinham um peso diferenciado. Os jornalistas corriam realmente atrás do que estava acontecendo. Não esperavam os (tendenciosos) releases dos assessores de imprensa (acho que isso nem existia nessa época) chegarem a suas mãos (hoje, de um modo geral, bem preguiçosas... ou super atarefadas como eles dizem). Sendo assim, fiquei realmente interessado em conhecer aquela farofada musical. Chamei Léozinho, e se não me engano, Gnomo, e fomos conferir de perto aquele début. E não foi em vão. Logo nos primeiros acordes de cavaco e violão, misturado com um groove pulsante de baixo e batera preciso. Percussão de samba, se misturando com afro, jongo, e outros ritmos e influencias. Letras muito bem sacadas sobre o cotidiano do Rio misturavam-se a melodias lindas e raps bem mandados. As melodias, de um modo geral, ficavam a cargo do rasta que tocava violão, chamado Gabriel Moura. E os raps eram muitíssimo bem mandados por uma figura interessantíssima. Um negro alto, magro, porém forte, com swing, teatralidade, e uma voz de trovão, que era chamado de Seu Jorge. Não parecia ter tanta idade assim para já ser considerado um “Seu”. Mas aquilo dava um certo charme ao figura.

A mistura não era nada nova: samba funk com pitadas de reggae, jongo, disco music, maracatu, ritmos regionais e internacionais se entrelaçando. A pólvora não estava sendo descoberta. E sim redescoberta. A propriedade com que aqueles rapazes faziam aquele som era algo digno de Jorge Ben, Black Rio, Bebeto... eles tinham propriedade pra fazer o que estavam fazendo. Não tanto pelo ineditismo, mas muito, muito pela competência e pelo vigor com que defendiam aquelas canções no palco, aquele show me chocou de forma pesada. Fiquei mal. Mal de cabeça com aquilo que via. E quis mais. Por cerca de dois anos, eu e meus amigos assistimos incontáveis shows do Farofa, da Lapa ao Malagueta, de Quinta do Bosque ao Humaitá. Fomos a todos os buracos aonde o Farofa ia e claro, o CD de estréia dos caras se tornou a trilha sonora da nossa pós-adolescência.

O Farofa fez parte de uma cena (que rejeitava o rótulo de cena) que tentou ser rotulada como MPC (música popular carioca), se bem me lembro, e que tinha outros aglutinados como Dread Lion, Acorda Bamba, Pedro Luis e a Parede, Idéia Rara... mas não rolou. Não houve uma unidade na proposta. Somado isso a falta de lugares médios para tocar, divulgação fraca de um CD considerado bairrista na época e às pesadas e incontáveis divergências (e brigas) internas, o Farofa acabou prematuramente, deixando uma série de órfãos na noite carioca.
Os integrantes foram tocar seus projetos, e Seu Jorge, sem dúvidas o que mais chamava atenção dentre todos aqueles talentosos músicos, seguiu com sua carreira solo. Lançou em 2001 seu primeiro disco intitulado Samba Esporte Fino, fez cinema no Brasil (uma esplêndida participação como Mané Galinha em Cidade de Deus) e começou uma carreira internacional muito bem sucedida, tanto como cantor, quanto como ator. Consolidou-se como artista pop internacional (diferente de artistas brasileiros que fazem trabalho regional para gringos verem). Rodou os maiores e principais palcos mundo afora. Mas, mesmo com tudo isso, eu, que acompanho discretamente a carreira de Seu Jorge, acabei me tornando um critico ferrenho da sua fase pós-Farofa. Saudosismo? Talvez. Mas o fato é que tanto em relação a composições quanto a arranjos, poucos foram os momentos nessa década de trabalho solo que me fizeram tirar, ao menos musicalmente, o chapéu para o Senhor Jorge.

Quando ouvi Mangueira e Chega no Swing, achei que ele tinha achado a sonoridade certa. Mas o restante do Samba Esporte Fino é tão irregular, que a minha esperança logo se transformou em frustração.

Com Cru, de 2004, a mesma coisa: abria com a excelente Tive Razão, mas depois se perdia em coisas como Mania de Peitão e outros bichos. Entre um hit óbvio como Carolina e outro como Burguesinha, assim seguia, pelo menos pra mim, a carreira de Sir Jorge. Tentativas de aproximação com o popular devem ter feito muito bem ao bolso do Jorge, mas nada foi mais terrivelmente chato que “Eu não sei paraaaaaaaaaaaaaaaaaaaar de te olhar” cantada por ele e Ana Carolina num insosso DVD conjunto dos dois. Uma nova (e pasmem, até artisticamente mais bem sucedida) tentativa com Alexandre Pires também foi feita. Mas nada realmente a altura do talento artístico de Seu Jorge. A impressão era que havia um canhão apontado para a mesmice mas não tinha pólvora pra detonar a bala.

Na noite do último sábado, 26 de março, fui surpreendido com um balaço de canhão no meio dos peitos. Estou, sinceramente, até agora atordoado (como fiquei depois do primeiro show do Farofa no Ballroom no milênio passado) com o que vi no palco do Circo Voador. Seu Jorge resgatou a criatividade e a ousadia sonora que o fez ser um dos mais relevantes artistas brasileiros da música pop na última década. O projeto se chama Almaz e é a prova de que, mesmo os melhores, só apresentam o seu melhor, se estão bem acompanhados e bem assessorados. E nesse quesito, Seu Jorge acertou em cheio: Lúcio Maia e Pupilo do Nação Zumbi (a maior banda do planeta) fora o baixista Antônio Pinto (eventualmente substituído pelo baixista do Nação, Dengue) formar uma das mais interessantes e ecriativas bandas da música mundial atualmente. No palco (lindíssimo, com um cenário simples mas muito funcional com nuvens de um material parecido com esponja, presas com fitas brancas), os quatro músicos mais um percussionista, fizeram um show inesquecível, relendo clássicos de samba, samba-funk, e musica pop internacional, de Martinho da Vila a Michael Jackson, como se fossem composições próprias, tamanha identidade que imprimiam as canções. Grooves secos de baixo e bateria ganhavam ambiências com a guitarra hipnótica de Lucia Maia (um dos três melhores guitarristas brasileiros da atualidade, sem a menor dúvida) e ora faziam dançar com swing multi regional que ia do samba do subúrbio carioca ao mangue de recife, ora faziam bater cabeça com o peso de músicos que não esquecem a escola do rock. Pra arrebatar de vez, Seu Jorge tinha total domínio da situação, da platéia, do seu corpo, do que fazia no palco. Um amadurecimento que só quem mergulha profundamente num trabalho de composição e lapidação de um personagem, consegue ter. Seu Jorge cantou, dançou, interpretou, mandou prender e mandou soltar em quase duas horas de show. Se você acha que nada mais poderia se esperar de uma nova releitura de “Mais que Nada”, você (e eu, claro) estava enganado. Os caras conseguiram essa e outras proezas ao longo de uma noite mágica. Até as músicas mais óbvias do repertório próprio do cantor, ganharam outra vida, outra cor, ganharam a vida que deveriam ter realmente. Lindo! Sublime!

Orgulhei-me por, por fazer parte daquela geração de artistas que estavam no palco. Orgulhei-me por ter acreditado que em algum momento eu veria o ressurgimento criativo de um grande artista, e agradeci aos deuses da música por estar, no Circo Voador, quintal da minha casa, vendo um show incrível em qualquer parte do mundo e em qualquer época da humanidade. Longa vida ao Almaz!

Ouvindo: Farofa e Almaz, claro.

3 comentários:

  1. João, adorei a sua resenha. Me arrepiei igual ao show de ontem. Curto/ia muito o farofa, mas não foi como a pólvora para mim. Mas ontem foi sinistro.
    Não sei nem o que ressaltar, mas não posso deixar de citar Rock with you e Ziggy Stardust, talvez por elas serem a minha pólvora. Ou porque eles dominavam também.
    Foi perfeito. Tem outro quando mesmo? : )

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  2. e agora? depois dessas palavras tão bem escolhidas, não há qualquer sensação que não seja a de querer muito, muito, que tenha outro show desse em breve. também quero me encantar!

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  3. dui, até ontem eu DETESTAVA a versão dele de ziggy. ontem, com aquela banda e aquele arranjo, ele encontrou a essência da música.
    anna!vai rolar... com certeza!
    bjo

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